Aquele médico ficava irado quando Nádia e eu cantávamos baixinho alguns hinos religiosos durante o plantão noturno para torná-lo mais alegre e produtivo. Como enfermeiros, gostávamos desse gostoso 'passatempo' enquanto realizávamos nossas tarefas com alegria.
O médico, porém, contestava nossa atitude de 'crentes' e até nos repreendia dizendo que o lugar para cantar hinos era a igreja. Para não aborrecê-lo ou desrespeitá-lo, calávamos para logo depois, a pedido de alguns pacientes, voltarmos a cantar (na ausência dele, claro). Cético, ele dizia: “Deus não existe, e vocês são tolos em acreditar nEle.”
A rotina de um hospital é gratificante, mas na maioria das vezes é cansativa. Numa das noites exaustivas de plantão (após ter terminado meu noivado), estava completamente alheio ao que se passava no recinto daquela unidade de tratamento intensivo. Apenas o corpo estava presente. Minha mente vagava lá na cidade onde estava minha amada. De todos os hospitais em que eu havia trabalhado como enfermeiro, nenhum era tão diferente quanto aquele. Sua unidade de tratamento intensivo permitia aos pacientes tomar banho de sol sem sair totalmente do recinto e sem sair dos aparelhos conectados para monitorá-los ou manter-lhes com vida.
O posto de enfermagem, ou 'nave de comando', como era chamado, ficava num lugar estratégico, onde todos os pacientes eram monitorados por comandos eletrônicos e visualizados através dos boxes de vidro que os separavam. Os leitos possuíam rodas que permitiam locomovê-los para o banho, dentro da própria UTI, para o banho de sol, na sacada do prédio, ou mesmo para exames e cirurgias fora do recinto.
No leito também ficavam os prontuários com as anotações dos médicos e enfermeiros, para maior praticidade e segurança do paciente, relatos imediatos de cuidados, observações urgentes, solicitações médicas, checagem horária de cada procedimento: cuidados, curativos, aspirações, medições, medicamentos e outras rotinas. Quando necessário, os prontuários eram recolhidos para depois serem devolvidos nos seus devidos leitos. Quando eram preparadas as medicações de rotina via oral, venosa, intramuscular, etc., trazia-se o prontuário e certificava-se de que aquele prontuário era do paciente certo. Esse procedimento evitava incidentes que poderiam ser fatais, em caso de troca.
Era uma noite fria de junho. O céu estava lindo e muito estrelado. Após o preparo das medicações que estavam sob minha responsabilidade, voltei para devolver os prontuários aos devidos leitos. Apressei-me para pegar a bandeja de medicações, pois já passava de meia-noite e meia. Cheguei ao leito da primeira paciente a receber a medicação.
Ana Lúcia era uma linda menina de oito anos de idade. Sua recuperação estava quase completa e receberia alta em aproximadamente três dias. Todas as manhãs na hora da refeição, ela me pedia pêra ou maçã raspada na colher. Fiquei feliz pensando comigo mesmo que em breve mais uma paciente estaria em casa, recuperada e feliz com sua família. Verifiquei o prontuário, que indicava: penicilina E.V. (2 mg). Desconectei a tampinha que dava para a corrente sanguínea via soro e conectei a seringa, contendo a forte medicação. Em uma fração de segundos, veio a reação da paciente que, até então, dormia tranquilamente. O monitor cardíaco indicava uma fibrilação. O coração de Ana Lúcia estava sem ritmo. Instintivamente, incorporei a agilidade profissional a que estava habituado após anos de atuação. Parei a medicação e chequei o aparelho, os fios e a paciente – tudo isso apenas para constatar que ela estava tento uma parada cardiorrespiratória.
Na área da saúde, um simples erro pode custar uma vida. Em enfermagem, aprendi uma regra áurea para administração de medicação. São os cinco certos: paciente certo, medicamento certo, dosagem certa, via certa e horário certo. No caso de Ana Lúcia, chequei tudo, menos “paciente certo”.
Eu havia cometido um erro fatal, trocando o prontuário de Maria de Lourdes, uma senhora de 70 anos com osteomelite (infecção óssea), que tomava alta dose de penicilina, pelo de Ana Lúcia, que era altamente alérgica a penicilina.
Por alguns segundos, que na verdade pareceram uma eternidade, hesitei em chamar o médico. Eu precisava escolher entre esconder meu erro e me 'safar' ou cumprir com a ética e ser preso, perdendo assim meu registro profissional. Minha vida parecia ter acabado. Mesmo assim, preferi assumir o risco. Acionei o médico de plantão, que já estava no local de repouso dos plantonistas. Pra minha surpresa, era o médico ateu que detestava crente e ficava bravo quando cantávamos no plantão.
Quando soube a razão da parada cardiorrespiratória na paciente, que estava prestes a receber alta, ele ficou irado. Xingou-me o quanto pôde. Ameaçou me processar, caso a paciente viesse a morrer. Nádia, a enfermeira que sempre cantava comigo, agiu bondosamente, apoiando-me o tempo todo.
Tentamos todos os procedimentos de ressuscitação cardiorrespiratória, mas em vão. O médico acionou o laboratório por três vezes, coletando sangue e classificando-o. O resultado foi alta dosagem de penicilina no sangue. Eu estava incriminado. Após três horas de manobra cardíaca, o médico deu o diagnóstico: a paciente estava morta. Pude ver seu olhar agudo me encarando. Colocando o dedo rente a meu nariz, ele vociferou: “Quero ver teu Deus te livrar dessa!”
O chão saíra de sob meus pés. Parecia que eu estava flutuando. Uma sensação de angústia e desespero tomou conta de mim. Afastei-me do leito enquanto Nádia ainda fazia os procedimentos terminais. Parei na sacada que dava para fora do prédio e olhei para o céu, fazendo a oração mais incrédula da minha vida: “Deus, se o Senhor existe, manifeste-Se agora!”
Em uma fração de segundos, com a oração ainda em minha mente, aconteceu o impossível. Ouvi o monitor cardíaco sinalizando. Por providência, ele ainda não havia sido desligado. Apenas dois pacientes estavam recebendo assistência monitorizada; e um deles era Ana Lúcia. Não foi difícil reconhecer os batimentos cardíacos dela. Sem querer acreditar, fui virando lentamente para onde estava a paciente. Nádia ainda estava lá tomando as últimas providências para o preparo do corpo. Após comprovar que o coraçãozinho de Ana Lúcia estava realmente batendo depois de três horas parado, Nádia olhou para mim. Com lágrimas nos olhos, ela perguntou: “Você estava orando, não estava?” Ainda sem acreditar no resultado daquela oração tão arrogante, balancei a cabeça confirmando. Com fé ou não, o fato era que Deus acabara de realizar um grande milagre.
Chamamos aquele médico às pressas. Ele estava escrevendo tudo que podia para me incriminar. Ao chegar próximo ao leito, ele tomou o pulso de Ana Lúcia bruscamente, demonstrando que não acreditava em nada do que havíamos dito. Espantado pelo que sentiu, soltou a mão dela e pôs os dedos em sua jugular. Ainda sem querer acreditar, ele disse: “O coração pode estar batendo novamente, mas a paciente está com morte cerebral.”
Foram feitos exames de pupila e reflexo, e o sangue foi novamente colhido e classificado três vezes, apenas para confirmar que nenhuma toxicidade fora encontrada. Eram quase seis horas da manhã. Ainda cético, aquele médico murmurou que a menina teria graves seqüelas: “O cérebro deve estar seriamente afetado por falta de oxigênio.”
Minha fé, antes arrasada, recuperara-se totalmente após presenciar a visita do Doador da Vida. Com convicção, respondi: “Doutor, é melhor o senhor acreditar em Deus, pois Ele visitou esse leito hoje e realizou um milagre na nossa frente. Esta menina está viva, e bem viva. Não haverá nenhuma seqüela. Deus tirou até a toxicidade do sangue dela.”
Às seis horas, como de costume, Ana Lúcia acordou e olhou para mim, com um olhar de quem dormira a noite toda, e disse: “Tio Argeu, me dá pêra raspada na colher?” Meu coração bateu forte. Não consegui mais conter a emoção. Saí para a sacada e chorei muito. Meu Deus mais uma vez não me decepcionara, mesmo em meio à minha incredulidade. “Perdão, Senhor”, eu disse chorando cada vez mais alto. “Perdão por duvidar da Tua existência.”
A pequena Ana Lúcia recebeu alta exatamente nos três dias esperados, após terem sido feitas baterias de exames, apenas para constatar que, quando Deus opera, Ele opera por completo. Nem sequer houve fraturas em suas costelas, devido às fortes massagens cardíacas. Seria até desnecessário dizer que aquele médico tão cético deixou de ser ateu. Após a procura de muitas pessoas que pediam orações, montamos naquele hospital um centro de apoio espiritual.
Quanto à minha noiva, casamo-nos pouco tempo depois e hoje formamos uma bela família, com mais quatro maravilhosos filhos, dois dos quais são um casal de gêmeos.
Deus me ensinou ricas lições naquele hospital. Ricos relacionamentos e fortes laços de amizade foram formados. Muitos outros milagres aconteceram naquele hospital enquanto trabalhei lá. Não foram realizados para minha satisfação nem tampouco por mim, mas sim em prol das carentes pessoas incrédulas e cheias de crendices que eram internadas ali.
Como foi no tempo dos apóstolos, Deus ainda Se manifesta para fazer maravilhas entre nós e por nós. A razão é simples: Ele nos ama. Sua divindade é manifesta sempre que se faz necessário e de forma extraordinária.
Não podemos usar Deus; mas mesmo que não acreditemos, Ele pode nos usar.
Deus seja louvado, pois Ele existe!
Argeu Lopes Freitas, pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
[Testemunho publicado no blog do Michelson Borges.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário