terça-feira, março 18, 2008

Solidão necessária

Como expressa bem o texto abaixo, publicado hoje na Folha de S.Paulo, "sozinho" não significa necessariamente "solitário". Ficar sozinho de vez em quando, longe de distrações, barulho e falação, é necessário – para sonhar, planejar, refletir, reavaliar, melhorar.

O silêncio, em alguns casos, também é sinônimo de sabedoria. Como adverte Salomão, a tagarelice pode ser “como pontas de espada, mas a língua dos sábios é medicina” (Provérbios 12:18). “Até o estulto, quando se cala, é tido por sábio, e o que cerra os lábios por entendido” (Provérbios 17:28).

Acima de tudo, o silêncio é imprescindível para ouvir a voz de Deus. Era no silêncio da madrugada que Jesus obtinha forças para enfrentar as provações do dia. Após a multiplicação dos pães, “tendo despedido a multidão, subiu sozinho a um monte para orar. Ao anoitecer, ele estava ali sozinho” (Mateus 14:23). Em outra ocasião, também “de madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus levantou-se, saiu de casa e foi para um lugar deserto, onde ficou orando” (Marcos 1:35).

É uma pena que hoje em dia as pessoas fujam tanto do silêncio e da introspecção, inclusive nas igrejas.

(Marily Sales dos Reis)

--

O silêncio

O vento frio, aos golpes, anunciava que o inverno estava se aproximando. Nuvens cinzentas cobriam os Alpes, como navios que navegavam velozes, levadas pelo vento. Era um velho mosteiro de freiras que praticavam o silêncio, costume abençoado que libertava as pessoas da obrigação de conversar com os vizinhos às mesas de refeições. Não ser obrigado a conversar é uma felicidade.

É raro que as pessoas entendam isso. Eu iria dar uma fala, faltava ainda meia hora e procurei um lugar escondido onde pudesse ficar quieto com os meus pensamentos. Achei-o sob uma escada, quase invisível e ali me escondi. Foi então que uma pessoa delicada me viu ali sozinho e bondosamente pensou: "O professor Rubem Alves está abandonado..." Dois minutos depois meu refúgio estava cheio de pessoas falantes que destruíram a minha solidão... Os tagarelas alegres são emissários do demônio porque com suas palavras tolas eles nos tiram das águas profundas em que nos encontrávamos. Deus é o Grande Mar. A alma é um peixe. Os poetas sabem disso.
T.S. Eliot escreveu: "Nosso olhar é submarino. Olhamos para cima e vemos a luz que se fratura através das águas inquietas..."

Hóspede naquele mosteiro, eu deveria obedecer aos horários e participar dos eventos. Um deles me horrorizou: participar das celebrações litúrgicas às 6h, às 12h e às 18h.

O santuário era um velho celeiro de madeira octogonal, muito grande e escuro, sem janelas. Os arquitetos, para pôr luz nas sombras, abriram buracos nas paredes, cobrindo-os com vidros coloridos. A luz do sol, entrando pelos orifícios e atravessando os vidros coloridos, faziam desenhos no espaço vazio, desenhos que se deslocavam à medida em que o sol caminhava pelo céu.

Os bancos, poucos, seguiam três lados do octógono; a mesa, iluminada com velas, tinha no seu centro um ícone de Jesus ao estilo bizantino. Cheguei no horário. Poucas pessoas. Os mosteiros não são lugares que atraiam turistas.

Fiquei à espera do início da liturgia, que deveria iniciar-se suiçamente ao repicar dos sinos às 6h da manhã. Os sinos repicaram mas nada aconteceu, nenhuma reza, nenhum hino, nenhuma leitura bíblica. Pus-me a examinar o espaço e as luzes que se entrecruzavam. O exercício de simplesmente ver tem o efeito de fazer parar o pensamento. Alberto Caeiro já dizia que "pensar é estar doente dos olhos..."

Os pensamentos, produtos internos da cabeça, são perturbações que distorcem a pureza da visão.
Aí, ao misticismo do ver seguiu-se o misticismo do ouvir. O vento descia furioso das montanhas, em golpes, lufadas que torciam a estrutura de madeira, provocando aqueles ruídos típicos de navios à vela batidos pelo vento. Ao lado do santuário havia uma plantação de macieiras nuas, o vento havia arrancado suas folhas todas, somente seus galhos pelados ficaram. Quando o vento sacudia a galharia era como se houvesse um mar enraivecido quebrando ondas. Aí os sons e as cores começaram a invocar poemas ancestrais. "E a terra era um abismo sem forma e o vento de Deus soprava violentamente sobre a superfície das águas... E disse Deus: "Haja luz..." E aí meus pensamentos foram possuídos pela poesia.

Mas e a liturgia? Já eram 6h20. Percebi então que a liturgia havia começado às 6h, quando os sinos tocaram... Só silêncio...

(Rubem Alves, educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Unicamp. Texto publicado na Folha de S.Paulo.)

2 comentários:

Anônimo disse...

Marily, feliz iniciativa de incluir este lindo texto que reflete sobre a importância da quietude... Daqueles raros momentos em que nossa alma é "possuída pela poesia".
E o resto, é silêncio!
Abraço,
Dóris Matos

São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2008

Anônimo disse...

marity me gusta to blog, pero no se si escribirte en español o en ingles? dime. www.opinaelnovato.blogspot.com